OBRAS DE MISERICÓRDIA – SOFRER COM PACIÊNCIA AS FRAQUEZAS DO NOSSO PRÓXIMO

“A prática da caridade não foi sempre tão suave para mim, como vos dizia há pouco, Madre querida. Para
prová-lo, vou relatar alguns pequenos combates que, certamente, vos farão sorrir. Por muito tempo, na oração da noite, sentava-me em frente de uma irmã que tinha uma mania estranha e, penso… muitas luzes, pois
raramente usava livro. Eis como o percebia: Logo que essa irmã chegava, punha-se a fazer um estranho barulhinho semelhante ao que se faria esfregando duas conchas um contra a outra. Só eu percebia, pois tenho ouvido muito bom (às vezes, um pouco demais). Impossível dizer-vos, Madre, como esse ruído me incomodava. Tinha muita vontade de olhar a autora que, por certo, não se dava conta do seu cacoete; era a única maneira de avisá-la, mas no fundo do coração sentia que mais valia sofrer isso por amor a
Deus e não magoar a irmã. Ficava quieta, procurava unir-me a Deus, esquecer esse ruído… tudo inútil. Sentia o suor inundar-me e ficava obrigada a uma oração de sofrimento. Embora sofrendo, procurava fazê-lo não com irritação, mas com paz e alegria, pelo menos no íntimo da minha alma. Procurei gostar do
barulhinho tão desagradável. Em vez de procurar não ouvi-lo, coisa que me era impossível, pus-me a prestar atenção nele como se fosse um concerto maravilhoso e minha oração toda, que não era de quietude, consistia em oferecer esse concerto a Jesus”. (Santa Teresinha do Menino Jesus)

 

“Nós, que somos os fortes, devemos suportar as fraquezas dos que são fracos,

e não agir a nosso modo.”  (Carta aos Romanos 15,1)

 

Essa obra de misericórdia espiritual está bastante ligada à obra corrigir os que erram, no sentido de que se faz necessário um bom discernimento para saber qual é o momento de corrigir e qual é o momento de suportar com paciência as fraquezas alheias. Como já meditamos anteriormente, o erro é uma grande oportunidade para crescermos e a correção deve contribuir para o processo de crescimento. Entretanto, há outra via a ser tomada quando vemos a pessoa cometendo um erro. Se o discernimento a indicar, essa via é a de suportar o erro alheio ao invés de corrigi-lo.

Como fazer o discernimento? Teresinha o testemunha no trecho acima, mostrando ser – ainda que tão jovem – uma verdadeira Ammá do deserto. Voltemos ao seu relato com atenção.

 

Pequenos combates. Não se trata de ser omisso diante de grandes erros do próximo. Se o erro é grave, precisa ser corrigido, se o erro é pequeno, pode ser muito bem suportado. Aliás, até os grandes erros alheios podem ser suportados com paciência, mas muitas vezes temos que os corrigir para sermos caridosos com o próximo. Então, o primeiro critério para suportarmos as faltas alheias é se estamos diante de pequenos erros do próximo.

Muito incômodo. Não é a intensidade com que estou incomodado com o erro alheio que deve me levar a discernir se devo corrigi-lo ou não. Portanto, não devo me guiar pelo que sinto. Normalmente, se nos sentimos muito incomodados com o erro alheio pensamos de imediato que devemos partir para a correção. Esse não é um bom discernimento. Muitas vezes o grande incômodo que sentimos acontece justamente para que eu possa o suportar com paciência. Então, o segundo critério para suportarmos as faltas alheias com paciência é não nos deixar guiar pela intensidade de nossos incômodos, uma expressão de nossos afetos.

Mais valia sofrer por amor. É necessário colocar na balança os dois benefícios que podem acontecer diante do erro do próximo: a correção ou o sofrer por amor. Tomando a reflexão anterior sobre corrigir os que erram e aplicando o que ali está, estaremos sendo misericordiosos ao corrigir. Porém, ainda antes da correção, cabe a pergunta: como estarei sendo mais misericordioso? Corrigindo o próximo ou sofrendo por amor a Deus e a ele? Há uma via que será mais misericordiosa do que a outra. Se nos empenharmos em fazer um bom discernimento não nos restará dúvida. Teresinha estava muito incomodada com a fraqueza da irmã e a corrigir não seria nada de mais, pois pela descrição dela a irmã parecia não estar muito conectada na oração, além de atrapalhar as pessoas. Porém, sua fraqueza não parecia lhe fazer grandes estragos pessoais. Teresinha percebeu isso e decidiu sofrer por amor a Deus e pela irmã, uma vez que decidiu não a magoar com a correção. Portanto, o terceiro critério para suportarmos as faltas alheias é se nosso sofrer por amor for um caminho de mais amor do que corrigir o irmão.

 

Bom, se discernimos que devemos sofrer com paciências as faltas alheias, devemos trilhar esse caminho munidos de forças para não voltarmos atrás, uma vez que somos muito, muito fracos e inconstantes, capazes de desistir de suportar logo na primeira dificuldade. A própria Teresinha mostra que, ao escolher esse caminho, precisou mudar de estratégia várias vezes. Vamos a elas.

 

Ficar quieta. É como prender-se no mesmo lugar de maneira imóvel como uma estátua. Não olhar, não levantar a cabeça, não falar através de linguagem corporal. Ficar absolutamente quieto como se estava antes da fraqueza do próximo aparecer em nossa frente.

Procurar unir-se a Deus. Pela oração, por jaculatórias, por um pedido de socorro. Seja qual for a maneira, devemos buscar a força para suportar em Deus. Se o ficar quieto resolver ou não, devemos buscar a união com Deus. Só Ele poderá nos fazer realizar essa obra de misericórdia.

Esquecer. Não dar importância à fraqueza é caminho de sabedoria. Não queiramos bater de frente com a fraqueza. Tentemos esquecê-la. Tentemos deixar ela passar por nós sem parar em nosso íntimo. Quanto mais treinados em deixar passar a fraqueza alheia melhor para nós e mais rápido nos desvencilharemos das fraquezas seguintes.

 

Pode ser que tudo isso seja inútil, como diz Teresinha. O que fazer, então? Bem, se as três estratégias acima derem errado, está na hora da modelagem do sofrimento.

Com paz e alegria. O sofrimento sempre chega para nós de um modo que nos incomoda ou não é sofrimento! Então, já em sua natureza, ele nos irrita. Porém, o que muita gente não sabe, é que ele é como argila. Pode ser modelado. Se não conseguimos esquecer o sofrimento podemos modelá-lo de modo que deixe de nos irritar e produza paz e alegria. Como fazer essa modelagem? Primeiro deixando surgir em nosso íntimo o desejo de gostar do que nos faz sofrer na certeza de que o sofrer nos leva ao amor. Não é gostar do sofrer por uma patologia psíquica, um masoquismo, mas gostar porque conhece o seu fruto. Em segundo lugar, se devemos gostar do que nos está fazendo sofrer, devemos vestir uma roupagem nova nele, como Teresinha fez. O barulho a incomodava? Então ele passou a ser para ela uma sinfonia com a qual ela se unia para oferecer o louvor a Jesus. Perceberam a modelagem? O que era barulho se transformou em sintonia, concerto. Essa atitude consiste justamente em não realizar uma colisão frontal com nosso sofrimento, mas permitir que ele nos atinja e retroalimente nossa energia para devolver a Deus e ao mundo o poder da dor transformado em amor.

As pessoas rígidas não têm sucesso nesse método. São muito duras e, ao se colidirem com a dor, se quebram. Quem tem sucesso são as pessoas com alma elástica. O sofrimento vem com toda sua fúria, bate de frente com a alma da pessoa, mas não a consegue destruir, pois ela é de elástico. Ao receber o poder da dor a alma elástica estica-se toda para trás, sem se romper. Em seguida, pela oração de desejo e revestida da graça que vem em seu auxílio, transforma a dor em amor dentro de si mesma. Ao voltar para o estado inicial, como estava antes de ser extremamente esticada pela dor, a alma elástica devolve a Deus um grande louvor e ao mundo o amor, beneficiando toda a humanidade com a remissão da dor que fizeram em si mesmas pelos méritos da Paixão de Cristo. Isso não é poesia. É ser cristão. É ser outro Cristo. Afinal, ninguém mais do que Jesus teve essa alma elástica. Quando toda a dor da humanidade e todo o pecado do mundo O atingiram, Ele reverteu tudo em amor ao Pai e à humanidade. A cruz, símbolo maior de dor, transformou-se em símbolo maior do amor.

Experimente viver isso em sua vida, começando pelos pequenos atos de suportar com paciência as fraquezas do próximo, grandes obras de misericórdia.

 

“Quando estivermos em Santa Maria dos Anjos, tão molhados pela chuva, enregelados pelo frio, enlameados de barro, aflitos de fome e batermos à porta do lugar, e o porteiro vier irado e disser: “Quem sois vós?” E nós dissermos: “Nós somos dois dos vossos frades”. E ele disser: “Vós não dizeis a verdade, aliás sois dois marotos que andais a enganar o mundo e a roubar as esmolas dos pobres; ide embora”; e não nos abrir, e nos fizer ficar fora, na neve e na água, com o frio e com a fome até de noite; então, se nós suportarmos tanta injúria e tanta crueldade, e tantas despedidas pacientemente, sem nos perturbarmos, e sem murmurar dele, e pensarmos humildemente que aquele porteiro nos conhece de verdade, que Deus o faz falar contra nós; ó frei Leão, escreve que aqui há perfeita alegria. E se, apesar disso, continuássemos batendo, e ele saísse para fora perturbado, e nos expulsasse como velhacos importunos, com vilanias e bofetões, dizendo: “Ide embora daqui, ladrõezinhos muito vis, ide ao hospital, porque aqui vós não comereis, nem vos abrigareis”; se nós suportarmos isso pacientemente, com alegria e com bom amor; ó frei Leão, escreve que aqui há alegria perfeita. E se nós, mesmo constrangidos pela fome, pelo frio e pela noite, ainda batermos mais, chamarmos e pedirmos por amor de Deus, com muito pranto, que nos abra e nos faça entrar assim mesmo, e ele escandalizado disser: “Estes são patifes importunos, fá-los-ei pagar bem isto, como merecem”; e sair para fora com um bastão cheio de nós, e nos agarrar pelo capuz e jogar por terra, e nos revirar na neve e nos bater, nó por nó, com aquele bastão: se nós suportarmos todas essas coisas pacientemente e com alegria, pensando nas penas de Cristo bendito, que temos que aguentar por seu amor; ó frei Leão, escreve que aqui e nisto há perfeita alegria”.  (São Francisco de Assis)